sábado, 31 de março de 2012

Invisível


Tenho saudades
de mim
mas não me encontro

Cruzo-me com o que resta
cá dentro
e tenho a certeza
de que não pertenço

Pergunto por mim
aqui e ali
ninguém se recorda
de ouvir os meus passos

Passo pela minha própria vida
invisível

Se desaparecer quem vai procurar
Se me evaporar quem vai dar pela falta

segunda-feira, 26 de março de 2012

Dinâmica


O coração
não me dispara
no peito
quando te vejo.

Antes se aninha
no teu,
está em casa.

Não vive do sangue
em sobressalto,
nem do trânsito
insano
das artérias.

Antes do som
familiar
das chaves que se aprestam
à porta de mim.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Pai


Estás mesmo não estando.
Estás na estante que já não existe
e no olhar com que me abraçavas
quando me vias junto a ela,
janela aberta para o mundo.
Estás nos livros que acumulo ainda
sem querer ler no alto de outra estante.
Estás na partilha que sempre falou
mais alto que os abraços
ou até mesmo que as palavras.
Obrigada por estares,
mesmo quando o gesto é de adeus.

Silêncio


Não confundas
silêncio
com esquecimento
– Flutuam memórias
como palavras
cá dentro
e são tantas sobre ti

Temo dizer-te
e deixar-te fugir
nas entrelinhas,
partilhar-te
e ver desfazer-se em pó
o que é montanha
e é só meu

Caminho apenas
sem palavras
junto às tuas pernas,
– em silêncio,
o silêncio mais eloquente
que já ouvi falar.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Leva

Se me queres levar
leva
Não tenho porque ficar
e já morro de saudade
de quem foi andando
na frente

Mas leva sem estardalhaço
Não quero ser um palhaço
na hora de sair de cena

sábado, 10 de março de 2012

A medida das coisas

Que nunca te julgues
o centro de mim
que não és

Nem te julgues
o centro de tudo
Que o tudo é nada
e somos tão pouco

Que não te julgues
o âmago sequer
de ti mesmo

Não és senão a paralela
traçada em relação
ao que acreditas ser

segunda-feira, 5 de março de 2012

Conjugação do verbo precisar

Procuro dentro de mim o animal selvagem que não conhece fronteiras e que resiste as intempéries. Preciso dele, preciso que me guie pelas veredas deste momento, vertiginosamente descendentes, escorregadias, lamacentas.
Preciso muito que me puxe para fora da floresta negra e húmida em que me afundo. Preciso que uive e arranhe e esgadanhe, preciso que mostre os dentes e lidere o caminho. Eu estou sem forças.

[ilustração "Wildlife", by The White Deer]